O
Cofre, em questão, ou O BAÚ DAS TRÊS CHAVES DO JUÍZO: O COFRE DOS ÓRFÃOS NOS
SÉCULO XVIII e XIX;
foi adquirido numa antiga fazenda no município do Serro na região de Diamantina,
em Minas Gerais. Estava esquecido em uma estrebaria para cavalos e outros
animais, onde eram vendidos estribos, selas e outros apetrechos antigos para
animais de montaria e carruagens. E lá um amigo esteve para comprar antigas
relíquias para nossas coleções particulares e eventuais compradores. Ao adentrar
por entre os vários ambientes antigos da referida fazenda (a qual mantemos
sigilo a pedido do proprietário) observou esse magnífico BAÚ esquecido em um
canto úmido e escondido, mas o qual logo lhe chamou a atenção fazendo com que
eu o adquirisse assim que tive oportunidade de negociar. Dessa forma, ao me
tornar o novo proprietário do mesmo; iniciei uma pesquisa sobre sua origem
devido a suas diferentes e curiosas características. Mais tarde fiz uma leve
restauração onde retirei o excesso de parafina, muito utilizada por anos na
tentativa de conservar tanto a ferragem quanto o madeiramento. No entanto essa
técnica muito usual até hoje por restauradores amadores, faz com que a peça
fique um tanto descaracterizada devido à qualidade do material usado. Mas
utilizando técnicas mais simples e convencionais, pude trazer a vida novamente
o esplendor da época em que ele reinou entre os séculos XVIII até meados do
XIX. Em seguida os processos de PESQUISA e RESTAURAÇÃO sobre o referido BAÚ:
História (https://pt.wikipedia.org/wiki/Serro)
Serro é um município
brasileiro
do estado de Minas Gerais.
Município rodeado por serras, morros, rios e cachoeiras,
o Serro se apresenta como excelente destino para os apreciadores do turismo
histórico e ecológico. Situada no centro-nordeste de Minas Gerais, na região
central da Serra do Espinhaço, Serro fica a 230
quilômetros de Belo Horizonte. É também uma importante Cidade
do Caminho dos Diamantes e da Estrada Real,
uma herança das minas que atraíram os Bandeirantes
paulistas e nordestinos no século XVIII.
Em 1701 teve início o arraial
que daria origem à atual cidade do Serro, centro da exploração de ouro na
região. O primeiro nome de que se têm notícias foi "Arraial do Ribeirão das Minas
de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro do Frio", dado em 1702, no ato de descoberta
oficial. Também há citações de "Arraial das Lavras Velhas", embora
sem registros oficiais. O nome da região, dado pelos índios, era Ivituruí (ivi
= vento, turi = morro, huí = frio) na língua tupi-guarani. Dai derivou Serro
Frio ou Serro do Frio. Ivituruí era uma região da Serra do Espinhaço. Em 1714 a povoação é elevada
a vila e município com o nome de Vila do Príncipe pelo governador Brás Baltasar da Silveira. Em 17 de
fevereiro de 1720 passou a ser sede da comarca do Serro do Frio
(norte-nordeste da capitania de Minas Gerais). Foi elevada à
categoria de cidade, com a denominação de Serro, por lei provincial de 6
de março de 1838. Próximo às cabeceiras do rio
Jequitinhonha, às margens dos córregos Quatro Vinténs e Lucas, paulistas
fincaram suas bandeiras a serviço da Coroa Portuguesa. Corria o ano de 1701 quando chegou à
região uma expedição chefiada pelo guarda-mor Antônio Soares Ferreira. Na terra chamada
de Ivituruí, a exemplo de outras terras das Minas Gerais, descobriram-se mais
jazidas de ouro. Vários ranchos foram erguidos nas proximidades dos córregos
dando início a formação dos arraiais de Baixo e de Cima que se desenvolvem em
pouco tempo e, juntos, deram origem ao povoado do Serro Frio. Novas levas de
pessoas chegaram atraídas pela abundância de ouro daquelas terras.
A africana Jacinta de Siqueira é apontada como
tendo destacado papel na fundação e povoamento dessa importante cidade
histórica de Minas Gerais. A respeito dela, Gilberto Freyre, em sua conhecida
obra Casa Grande & Senzala, a identificou
como tendo sido "tronco matriarcal" de um grupo de ilustres famílias
do Brasil, sendo dela descendentes importantes e ricos homens da governança do
país. A exploração desordenada da primeira década do século XVIII levou à
criação do cargo de superintendente das minas de ouro da região, ocupada pelo
sargento-mor Lourenço Carlos Mascarenhas e Araújo
em 1711.
E mais e mais gente chegou, o povoado cresceu e, em 1.714, o arraial é elevado
a Vila do Príncipe.
Mais tarde, além do ouro, os mineradores descobrem
lavras de diamante na região onde hoje estão Milho Verde,
São Gonçalo do Rio das Pedras e Diamantina.
Para defender os interesses do império, em 1720 é criada a grande comarca do
Serro Frio, que passa a ser a maior comarca das Minas, sediada na Vila do
Príncipe e abrangendo uma grande área da qual fazia parte o então arraial do
Tijuco, hoje Diamantina, e todo o norte-nordeste do estado. Muitas foram às
restrições impostas à exploração de ouro na comarca, após o descobrimento dos
diamantes. Em 1725
é determinada a criação da Casa de Fundição, para
onde toda a produção aurífera da região passaria a ser encaminhada. Mas, apesar
de todas as regras impostas, muitos aventureiros ganharam contrabandeando ouro
e diamante.
O COFRE DO JUIZADO
DE ÓRFÃOS
As Ordenações
do Reino - legislação portuguesa compilada e publicada no início
do Século XVII - determinavam que, se um homem morresse e deixasse
herdeiros ainda legalmente menores, podiam ficar os bens a cargo da mãe, se
esta, segundo os magistrados, tivesse capacidade para tanto. Se não fosse esse
o caso, era então indicado um tutor, que se encarregaria de gerir os negócios
dos herdeiros até que, ainda segundo as leis da época, chegassem à idade de
fazê-lo por si mesmos.
Ocorre
que, às vezes, entendiam os magistrados que era mais adequado converter os bens
em dinheiro, que deveria ser aplicado para assegurar que o patrimônio dos
órfãos não sofresse dano. É aí que entra o tal cofre ou arca do Juizado de
Órfãos. Dizia o Livro Primeiro das Ordenações, no Título
LXXXVIII, § 31 (*):
"Mandamos que o dinheiro
dos órfãos se deposite em uma arca com três chaves, em poder de um depositário,
pessoa abonada, que haverá em cada cidade, vila e conselho." (**)
E
prosseguia, com mais detalhes, no § 32:
"... E mandará fazer à
custa do dinheiro dos órfãos uma arca com três chaves de diferentes guardas,
das quais terá o Juiz dos Órfãos uma, o Depositário outra e o Escrivão dos
Órfãos outra; (...) E o escrivão que tiver a dita chave, terá na arca dois
livros, um para a receita e outro para a despesa do dinheiro que se houver de
meter e tirar dela, os quais livros serão encadernados e de tantas folhas e
intitulados um como o outro, e as folhas serão contadas e assinadas, segundo
forma de nossas Ordenações, sob as penas nelas conteúdas, e serão assinadas
pelo provedor da Comarca, os quais livros não se tirarão da arca, senão quando
se neles houver de escrever."
Em São
Paulo, nos tempos do Brasil Colonial, as mesmas Ordenações
deveriam estar em vigor (às vezes, acontecia...). Portanto, tinha São Paulo seu
próprio cofre do Juizado de Órfãos, com suas três chaves, de acordo com
Pedro Taques de Almeida Paes Leme (***), pelos menos a partir de começos do
Século XVIII:
"João Dias da Silva, foi nobre cidadão de São Paulo, em cuja
república teve grande parte e voto respeitoso nas matérias do governo civil ou
do real serviço, tratando-se por assembléia. Foi juiz de órfãos por provisão de
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, pela qual tomou posse em 16 de julho
de 1711, e estando servindo teve provisão régia para servir até haver
proprietário, e nela se faz menção de ser o dito João Dias o que mandou fazer
cofre de três chaves para segurança dos órfãos."
Ora,
sucede que, em grande parte do Brasil daqueles tempos, havia um problema
crônico de falta de dinheiro amoedado, que obrigava a população a viver fazendo
trocas diretas de mercadorias. Um grave inconveniente é claro, que tornava o
acesso ao Cofre dos Órfãos, onde havia "dinheiro de verdade", um
privilégio muito disputado. É o que conta Affonso de E. Taunay:
"O pouco dinheiro amoedado se concentrava nas mãos de alguns
argentários e no cofre de órfãos, cujo papel na vida econômica do burgo pode
ser comparado servatis servandis ao dos estabelecimentos bancários
hodiernos.
Quase sempre os bens dos herdeiros menores são vendidos em praça, a fim
de se evitarem "descaminhos e defraudos", e o produto aplicado em
empréstimos vencendo juros de 8% ao ano. Obrigava o prestamista sua pessoa e
bens móveis e de raiz havidos e por haver, comprometendo-se a pagar a dívida ao
pé do juízo, no cabo e fim de um ano, sem contradição alguma e sem a isto pôr
dúvida nem embargo algum. Os empréstimos exigiam ainda a garantia pessoal de um
fiador e principal pagador. “Tão disputado o numerário que nunca permanecia no
cofre do juízo, aparecendo logo quem o pretendesse.” (****)
Vê-se,
pois, que do dinheiro dos órfãos era feito um grande negócio,
principalmente em São Paulo, na qual a morte de homens com filhos menores não
era nada incomum. Metiam-se os pais interiores adentro para apresamento de
índios ou procura de ouro, e muitas vezes tudo o que voltava eram os ossos em
um saco de couro, para sepultamento em alguma igreja; a morte de mulheres no
parto era coisa corriqueira, de modo que, ao longo da vida, não raro um homem
casava-se várias vezes, e seguia tendo filhos enquanto conseguia o que
resultava, eventualmente, em homens bastante velhos com filhos muito pequenos
e, daí, uma orfandade precoce; as doenças, na época, levavam muita gente à
morte por absoluta falta de tratamento. Disso se conclui que o número de órfãos
não era assim tão exíguo. Por outro lado, como deveria ser pobre a povoação em
que uma parte substancial do dinheiro amoedado disponível provinha, muitas
vezes, do Cofre do Juizado de Órfãos!
(*) Ordenações
do Reino
De acordo
com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(**)
Concelho (sim, com "c"), nome dado à divisão municipal portuguesa.
(***) De
acordo com a Nobiliarchia Paulistana.
(****)
TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo
Brasília:
Ed. Senado Federal, 2004, p. 115
ALGUNS BAÚS E COFRES SEMELHANTES EM MUSEUS
DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e
Jurídicas
PGHIS – Programa de Pós-Graduação em História
AS TRÊS CHAVES DO JUÍZO: O COFRE DOS ÓRFÃOS E O CRÉDITO
NOS TEMPOS DO DECLÍNIO DO OURO – VILA DE SÃO JOÃO DEL-REI (1774-1806)
Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de São João del-Rei, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. Afonso de Alencastro Graça Filho
RAPHAEL CHAVES FERREIRA
São João del-Rei
2015
2015
Resumo
Este trabalho se
dedica à análise do papel financeiro do cofre do juízo dos órfãos da vila de
São João del-Rei em meio a um contexto econômico marcado pelo esgotamento das
jazidas auríferas, que leva a um processo de acomodação evolutiva, no qual os
fatores de produção seriam direcionados para a produção de gêneros voltados ao
mercado de abastecimento. O cofre dos órfãos, instituição que data do reinado
de D. João III, funcionava como uma espécie de reserva de liquidez em meio a
uma formação social e econômica caracterizada por uma crônica escassez de
numerário e por um endividamento estrutural. Por esta razão, o controle dos
cargos ligados a essa magistratura conferiam a seus dignitários um importante
capital social.
Introdução
Vila
de São José do Rio das Mortes, o ano era 1793. Manoel Gonçalves da Costa se
apresentava diante do juiz de órfãos daquela vila, e declarava que, como tutor
do menor Antônio, filho de Manoel da Costa Afonso e seu irmão, haviam feito
arrematar em praça pública os bens de sua legítima pela quantia de 286$127,
passando escritura de dinheiro a juros ao mesmo comprador, o Alferes Manoel
Mendes dos Santos. O tutor pedia ao juiz que os juros dessa dívida fossem
consignados à alimentação e criação do órfão.
Quatro
anos depois, em junho de 1797, era intimado pelo Sargento-Mor Antônio da
Fonseca Pestana de Gouveia, que então atuava como ministro daquele juízo, a
prestar contas. O tutor, representado por seu procurador, mandava dizer que a
órfã Joaquina, sua irmã, já se encontrava casada há mais de cinco anos e
entregue dos bens que lhe foram adjudicados da partilha. Dizia mais que o menor
Antônio, então com 18 anos, vivia em boa educação em companhia da
inventariante, sua mãe, e que já havia cobrado os juros vencidos ao Alferes
Manoel Mendes dos Santos, mas que não os havia destinado ao cofre dos órfãos
por terem sido empregues na alimentação do seu tutelado.
Três
anos depois se fazia juntada ao documento, na qual se dizia que o órfão Antônio
da Costa se casara com Maria José da Visitação e pedia que lhe fosse entregue a
sua herança. O Capitão José dos Santos, juiz de órfãos daquela vila, deu sua
licença, declarando Antônio emancipado e ordenando que se lhe entregasse
aqueles 286$127 que lhe tocavam por sua herança, o que foi feito no dia 21 de
junho de 1800.1
1
IPHAN-SJDR, Caixa destinada às Contas de Tutela, nº 02;
O
que tem a nos dizer a experiência do órfão Antônio da Costa, do seu irmão e
tutor, Manoel Gonçalves da Costa, do Alferes Manoel Mendes, devedor ao cofre do
juízo dos órfãos daquela vila, sobre o Império Português? Muito, na medida em
que depõe sobre a normatização do problema da herança, sobre o amparo à
orfandade e sobre a construção de mecanismos de crédito institucionais fundamentais em meio às diversas formações sociais e
econômicas sob a autoridade da Coroa portuguesa.
As Ordenações Filipinas estabeleciam que, com a morte do pai,
ficava o juiz de órfãos responsável por dar tutores aos menores, que zelassem
por seus bens e cuidassem para que fossem criados e educados conforme a sua
condição. Os tutores também deveriam pôr em pregão os bens adjudicados à
herança dos menores, vertendo-os em numerário. Esse dinheiro era então
depositado no cofre dos órfãos, sendo correntemente capitalizado em empréstimos
a juro. Sendo a carência de liquidez uma característica intrínseca às economias
pré-capitalistas, o controle do cofre era estratégico para os grupos sociais
dominantes, funcionando como um bolsão capaz de reter uma parcela da acumulação
gerada no espaço econômico imediato. O dinheiro era, pois, reinserido no
mercado e na produção, alimentando a reprodução das formas sociais e econômicas
vigentes. Paralelamente, os juros e os rendimentos dessas dívidas eram
direcionados para a criação dos órfãos e, de modo mais amplo, para a manutenção
dos interesses da unidade familiar, como depõe o caso de nosso Antônio da
Costa. Tal era a premência do juízo de órfãos no provimento de liquidez à
economia colonial que Affonso de Taunay, em sua História da Cidade de São
Paulo, chegou a compará-lo com o dos estabelecimentos bancários hodiernos.2 Mais recentemente, João Fragoso, admitido um certo
anacronismo, comparou a instituição a uma espécie de poupança social,
situando-a em meio ao conjunto de bens e serviços identificados à República que
corporificavam uma economia do bem comum, na qual a posse desses cargos propiciava
uma espécie particular de apropriação do excedente social.
2 TAUNAY,
A. de. História da Cidade de São Paulo. Edições do Senado Federal,
Brasília: 2004, p. 116;
3 FRAGOSO, J. “A formação da economia colonial no Rio de
Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)”. In: FRAGOSO,
J; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira: 2010;
Assim, em nosso primeiro capítulo, intitulado História
custodial e orfandade: o direito e a questão da tutela no Império Português –
Vila de São João del-Rei, século XVIII, remontamos aos séculos XIII e XIV,
buscando situar historicamente o problema da criança desamparada no mundo
ibérico, tendo por pano de fundo a formação dos primeiros Estados Nacionais e
os desafios colocados com o renascimento urbano e o despontar da burguesia
mercantil, buscando apreender fundamentos do repertório de representações
simbólicas que conferiam sentido e orientação às práticas jurídicas relativas à
orfandade e ao problema da herança. Assim, debruçamo-nos sobre alguns dos
principais códigos de leis surgidos na Península entre o baixo medievo e os
primeiros séculos da era moderna, iniciando pelas Siete Partidas de
Afonso X de Leão e Castella, que basicamente retomavam as disposições do Corpo
Iuris Civilis aliadas ao direito canônico e que tiveram importante
repercussão em Portugal ao longo do século XIV, passando pelos ordenamentos
subsequentes: afonsino, manuelino e filipino.
Até as Ordenações Afonsinas, as atribuições relativas à
gestão da pessoa e dos bens dos órfãos cabiam aos juízes ordinários – e, apenas
em caráter especial, aos juízes de órfãos. Ou seja, apenas algumas vilas e
cidades possuíam tal magistratura em regime de privilégio. Sendo a aristocracia
portuguesa cooptada por meio da burocracia, não é de se estranhar que o cargo
tenha se tornado uma importante moeda de troca na economia de mercês. Seu
número cresceu de tal maneira ao longo do século XV que o texto manuelino
formalizaria o julgado dos órfãos logo ao início do quinhentos.
A gestão dos bens dos órfãos, no entanto, foi constante
matéria de disputas. As Ordenações Afonsinas, por exemplo, compilavam uma lei
datada dos tempos do reinado de D. Duarte que buscava coibir a destinação
usurária do dinheiro dos menores, ordenando aos tutores, no zelo pelas almas de
seus súditos, que agissem no interesse dos menores sem ofensa às leis de Deus.
As Ordenações Manuelinas, por sua vez, mantiveram a condenação à usura, mas
abriam brecha para que o dinheiro dos menores fosse dado a ganho a mercadores
abonados e oficiais mecânicos, desde que se oferecesse hipotecas e fiadores que
viessem salvaguardar o interesse dos menores – podendo mesmo lançar em pregão o
dinheiro dos órfãos para que os interessados se manifestassem. Essa política
levou a tamanhos descaminhos e prejuízos para os menores que, sob o reinado de
D. João III, na década de 1530, seria regulamentada a arrecadação do dinheiro
dos órfãos em cofre específico. 19 O trabalho do historiador João
Fragoso indicou como, na ausência de mecanismos creditícios consolidados, o
cofre dos órfãos foi uma fonte de liquidez fundamental para a própria
sedimentação da ordem colonial no Rio de Janeiro seiscentista.4 Entendemos que tal experiência é passível de alguma
generalização, na medida em que, sobretudo a partir do início do século XVII, a
Coroa dirige constantes apelos às autoridades coloniais para que se procedesse
à arrecadação das fazendas dos órfãos em cofres específicos, instando para que
esse dinheiro fosse dado a juro no interesse dos menores e do bem comum.
Entendemos, pois, que a instituição e as disposições jurídicas que a enredavam
se tornam peça chave para a subsistência da empresa colonial. Partindo dessa
chave de análise, transpusemos o problema da interiorização da metrópole para a
capitania mineira, tendo por recorte espacial a vila de São João del-Rei, sede
da comarca do Rio das Mortes desde 1713, onde a gestão das pessoas e dos bens
dos órfãos coubera aos juízes ordinários até 1731, quando um alvará régio
mandou ao ouvidor que fizesse eleger juiz e escrivão de órfãos, em razão da
inexperiência daqueles em matérias de direito e de apropriações indébitas dos
fundos dos órfãos. Além disso, temos indícios de que já em 1727 o dinheiro era
dado a juro, como depõe uma carta de D. João V, na qual este ordena que, no
interesse dos órfãos, os empréstimos fossem condicionados a penhores em ouro e
prata. Valemo-nos desse expediente para discorrer sobre a lógica do funcionamento
da instituição, baseando a análise fundamentalmente nas escrituras notariais e
no único livro de registros do cofre dos órfãos de que dispomos para o período
proposto, com termo de abertura em 1802, além da contabilidade do inventário
post mortem do Capitão João Soares de Bulhões, cujo detalhamento nos
possibilita compreender aspectos práticos das relações de tutela. 4 FRAGOSO, J. “A
formação da economia colonial no Rio de Janeiro...”, op. cit.;
Em nosso segundo capítulo, intitulado Das Minas Gerais
setecentistas – Bases da materialidade: a Comarca do Rio das Mortes,
dedicamo-nos, a partir de um breve balanço historiográfico, a resgatar os
fundamentos das relações de produção que organizavam a lógica do capital
mercantil e do crédito na capitania mineira no intercurso com outras praças da
colônia, sobretudo Rio de Janeiro e Salvador, uma vez que, na hierarquização
dos circuitos mercantis, São João del-Rei se inseria de maneira subordinada ao
capital dos negociantes grossistas 20 estabelecidos nessas praças.
Encarecendo o contexto econômico diferenciado da comarca em relação às demais
regiões da capitania, devido ao maior equilíbrio que ali se verificava na
distribuição entre as atividades mineradoras, agropecuaristas e mercantis,
situamos o processo de acomodação evolutiva que decorre do esgotamento das
jazidas auríferas em termos de um deslocamento do eixo econômico da capitania,
que passava de Vila Rica a Rio das Mortes.
5 Ver ALMEIDA, C. M. C. de. Ricos e Pobres em Minas
Gerais Colonial. Belo Horizonte: Argumentum, 2010. Ver também GRAÇA FILHO,
A. de A. Negócios negreiros na antiga comarca do Rio das Mortes: Minas
Gerais, c.1750-c.1850. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado/CNPq. São
João Del Rei, fevereiro de 2010;
6 Ver GRAÇA FILHO, A. de A. A Princesa do Oeste e o mito da decadência
de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Anablume, 2002;
Entendemos, contudo, que, embora Rio das Mortes tivesse um
maior grau de mercantilização do excedente agrícola relativamente à Vila Rica,
a praça comercial de São João del-Rei na segunda metade do século XVIII estava
longe da pujança que adquiriria a partir da primeira metade do século XIX.6 No setecentos, sequer é possível delimitar com clareza uma
esfera mercantil descolada do setor agrário, considerando que as grandes
fortunas sãojoanenses se caracterizavam justamente pela diversificação de
atividades econômicas, compondo uma elite pluriocupacional.7 Diante da relativa fragilidade do setor mercantil na sede da
comarca do Rio das Mortes, torna-se compreensível o papel proeminente do cofre
dos órfãos no mercado creditício local – cujos movimentos e flutuações são
matéria de nosso terceiro capítulo: Instituições Coloniais e Crédito: do
papel creditício do Juízo de Órfãos na vila de São João del-Rei (1774-1806).
Nesse capítulo também buscamos identificar o perfil dos
homens e mulheres que tomaram empréstimos do cofre de órfãos, ao longo do
período proposto, cruzando as escrituras públicas com os inventários post
mortem sob a guarda do arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, em São João del-Rei.
Em nosso quarto e último capítulo, intitulado Dos agentes
do Juízo: um exercício de microanálise e prosopografia – São João del-Rei
(1770-1809), 21 municiamos
aportes da microanálise, mudando a escala de observação e procurando ver mais
de perto a trama dos agentes que orbitaram em torno do juízo dos órfãos da
vila, iniciando por um estudo prosopográfico com o objetivo de situar cada um
dos onze homens que ocuparam o cargo de juiz de órfãos ao longo do período
proposta em sua teia relacional. E, por fim, encerramos com um estudo de caso
sobre a gestão dos bens e pessoas dos órfãos do Capitão João Soares de Bulhões,
principal fortuna mobilizada pelos empréstimos da instituição em nossa amostra,
no intuito de deslindar a dinâmica da instituição, buscando fugir às armadilhas
funcionalistas mediante a reconstrução narrativa da agência dos sujeitos que
orbitavam em torno da esfera de influência daquela magistratura.
Por fim, julgamos necessárias algumas considerações sobre a
documentação sobre a qual nos apoiamos. A maioria de nossas fontes é de
natureza cartorial, sendo que as escrituras notariais constituem a base de
nossa pesquisa. Conforme referimos, o primeiro livro do cofre dos órfãos que
chegou até nós têm o seu termo de abertura em 1802. Assim, como era costumeiro
que os empréstimos fornecidos pela referida instituição fossem formalizados em
notas públicas para maior segurança dos menores, é fundamentalmente essa fonte
que nos serve de base para mensurar a sua atividade creditícia. E aqui surge o
primeiro problema: a documentação é lacunar. A série é descontínua entre abril
de 1782 e abril de 1786; março de 1787 e janeiro de 1789; e entre setembro de
1794 e novembro de 1796 – ou seja, sobretudo a década de 1780 restou
prejudicada. Procedemos, pois, ao levantamento de todas as escrituras públicas
de dívidas registradas no período, fossem elas procedidas de instituições
coloniais – como o cofre dos órfãos – ou de credores privados, cientes de que
boa parte das transações creditícias neste mercado, marcado pela informalidade
e pela pessoalidade, davam-se à revelia dessas formas de registro. Todavia,
embora as escrituras notariais dêem conta de apenas uma parcela das transações
realizadas no âmbito desse espaço econômico, servem-nos como índices – isto é,
como termômetros para mensurar os movimentos conjunturais desse mercado.
As escrituras notariais também foram a base a partir da qual
selecionamos os inventários post mortem e testamentos representativos,
que nos permitissem reconstruir os espaços de ação da instituição atentos à
dialética entre as disposições 22 normativas do direito – forma por excelência da violência
simbólica8 e engrenagem fundamental no processo
que preside à construção e constante reiteração da soberania lusitana – e os
espaços de autonomia dos sujeitos, isto é, a maneira como se dá a apropriação
desses espaços, os modos de fazer, configuradores daquilo que De Certeau chamou
de rede de antidisciplina, que nada mais são que as maneiras de fazer, “as
formas subreptícias assumidas pela criatividade dispersa, tática e
bricoladora”, as astúcias dos consumidores da ordem que, microbianamente,
alteram o funcionamento das instituições e dos vetores disciplinares.9
8
BOURDIEU, P. O poder simbólico.
Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil: 1989, p. 211;
9 CERTEAU, M. de. A invenção do
cotidiano. Petrópolis, Editora Vozes: 1998, pp. 38-41; 23
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