sábado, 4 de fevereiro de 2017

O COFRE DO JUIZADO DE ORFÃOS

O Cofre, em questão, ou O BAÚ DAS TRÊS CHAVES DO JUÍZO: O COFRE DOS ÓRFÃOS NOS SÉCULO XVIII e XIX; foi adquirido numa antiga fazenda no município do Serro na região de Diamantina, em Minas Gerais. Estava esquecido em uma estrebaria para cavalos e outros animais, onde eram vendidos estribos, selas e outros apetrechos antigos para animais de montaria e carruagens. E lá um amigo esteve para comprar antigas relíquias para nossas coleções particulares e eventuais compradores. Ao adentrar por entre os vários ambientes antigos da referida fazenda (a qual mantemos sigilo a pedido do proprietário) observou esse magnífico BAÚ esquecido em um canto úmido e escondido, mas o qual logo lhe chamou a atenção fazendo com que eu o adquirisse assim que tive oportunidade de negociar. Dessa forma, ao me tornar o novo proprietário do mesmo; iniciei uma pesquisa sobre sua origem devido a suas diferentes e curiosas características. Mais tarde fiz uma leve restauração onde retirei o excesso de parafina, muito utilizada por anos na tentativa de conservar tanto a ferragem quanto o madeiramento. No entanto essa técnica muito usual até hoje por restauradores amadores, faz com que a peça fique um tanto descaracterizada devido à qualidade do material usado. Mas utilizando técnicas mais simples e convencionais, pude trazer a vida novamente o esplendor da época em que ele reinou entre os séculos XVIII até meados do XIX. Em seguida os processos de PESQUISA e RESTAURAÇÃO sobre o referido BAÚ: 


Serro é um município brasileiro do estado de Minas Gerais. Município rodeado por serras, morros, rios e cachoeiras, o Serro se apresenta como excelente destino para os apreciadores do turismo histórico e ecológico. Situada no centro-nordeste de Minas Gerais, na região central da Serra do Espinhaço, Serro fica a 230 quilômetros de Belo Horizonte. É também uma importante Cidade do Caminho dos Diamantes e da Estrada Real, uma herança das minas que atraíram os Bandeirantes paulistas e nordestinos no século XVIII. Em 1701 teve início o arraial que daria origem à atual cidade do Serro, centro da exploração de ouro na região. O primeiro nome de que se têm notícias foi "Arraial do Ribeirão das Minas de Santo Antônio do Bom Retiro do Serro do Frio", dado em 1702, no ato de descoberta oficial. Também há citações de "Arraial das Lavras Velhas", embora sem registros oficiais. O nome da região, dado pelos índios, era Ivituruí (ivi = vento, turi = morro, huí = frio) na língua tupi-guarani. Dai derivou Serro Frio ou Serro do Frio. Ivituruí era uma região da Serra do Espinhaço. Em 1714 a povoação é elevada a vila e município com o nome de Vila do Príncipe pelo governador Brás Baltasar da Silveira. Em 17 de fevereiro de 1720 passou a ser sede da comarca do Serro do Frio (norte-nordeste da capitania de Minas Gerais). Foi elevada à categoria de cidade, com a denominação de Serro, por lei provincial de 6 de março de 1838. Próximo às cabeceiras do rio Jequitinhonha, às margens dos córregos Quatro Vinténs e Lucas, paulistas fincaram suas bandeiras a serviço da Coroa Portuguesa. Corria o ano de 1701 quando chegou à região uma expedição chefiada pelo guarda-mor Antônio Soares Ferreira. Na terra chamada de Ivituruí, a exemplo de outras terras das Minas Gerais, descobriram-se mais jazidas de ouro. Vários ranchos foram erguidos nas proximidades dos córregos dando início a formação dos arraiais de Baixo e de Cima que se desenvolvem em pouco tempo e, juntos, deram origem ao povoado do Serro Frio. Novas levas de pessoas chegaram atraídas pela abundância de ouro daquelas terras.

A africana Jacinta de Siqueira é apontada como tendo destacado papel na fundação e povoamento dessa importante cidade histórica de Minas Gerais. A respeito dela, Gilberto Freyre, em sua conhecida obra Casa Grande & Senzala, a identificou como tendo sido "tronco matriarcal" de um grupo de ilustres famílias do Brasil, sendo dela descendentes importantes e ricos homens da governança do país. A exploração desordenada da primeira década do século XVIII levou à criação do cargo de superintendente das minas de ouro da região, ocupada pelo sargento-mor Lourenço Carlos Mascarenhas e Araújo em 1711. E mais e mais gente chegou, o povoado cresceu e, em 1.714, o arraial é elevado a Vila do Príncipe.
Mais tarde, além do ouro, os mineradores descobrem lavras de diamante na região onde hoje estão Milho Verde, São Gonçalo do Rio das Pedras e Diamantina. Para defender os interesses do império, em 1720 é criada a grande comarca do Serro Frio, que passa a ser a maior comarca das Minas, sediada na Vila do Príncipe e abrangendo uma grande área da qual fazia parte o então arraial do Tijuco, hoje Diamantina, e todo o norte-nordeste do estado. Muitas foram às restrições impostas à exploração de ouro na comarca, após o descobrimento dos diamantes. Em 1725 é determinada a criação da Casa de Fundição, para onde toda a produção aurífera da região passaria a ser encaminhada. Mas, apesar de todas as regras impostas, muitos aventureiros ganharam contrabandeando ouro e diamante.


O COFRE DO JUIZADO DE ÓRFÃOS

As Ordenações do Reino - legislação portuguesa compilada e publicada no início do Século XVII - determinavam que, se um homem morresse e deixasse herdeiros ainda legalmente menores, podiam ficar os bens a cargo da mãe, se esta, segundo os magistrados, tivesse capacidade para tanto. Se não fosse esse o caso, era então indicado um tutor, que se encarregaria de gerir os negócios dos herdeiros até que, ainda segundo as leis da época, chegassem à idade de fazê-lo por si mesmos.
Ocorre que, às vezes, entendiam os magistrados que era mais adequado converter os bens em dinheiro, que deveria ser aplicado para assegurar que o patrimônio dos órfãos não sofresse dano. É aí que entra o tal cofre ou arca do Juizado de Órfãos. Dizia o Livro Primeiro das Ordenações, no Título LXXXVIII, § 31 (*):
"Mandamos que o dinheiro dos órfãos se deposite em uma arca com três chaves, em poder de um depositário, pessoa abonada, que haverá em cada cidade, vila e conselho." (**)
E prosseguia, com mais detalhes, no § 32:
"... E mandará fazer à custa do dinheiro dos órfãos uma arca com três chaves de diferentes guardas, das quais terá o Juiz dos Órfãos uma, o Depositário outra e o Escrivão dos Órfãos outra; (...) E o escrivão que tiver a dita chave, terá na arca dois livros, um para a receita e outro para a despesa do dinheiro que se houver de meter e tirar dela, os quais livros serão encadernados e de tantas folhas e intitulados um como o outro, e as folhas serão contadas e assinadas, segundo forma de nossas Ordenações, sob as penas nelas conteúdas, e serão assinadas pelo provedor da Comarca, os quais livros não se tirarão da arca, senão quando se neles houver de escrever."
Em São Paulo, nos tempos do Brasil Colonial, as mesmas Ordenações deveriam estar em vigor (às vezes, acontecia...). Portanto, tinha São Paulo seu próprio cofre do Juizado de Órfãos, com suas três chaves, de acordo com Pedro Taques de Almeida Paes Leme (***), pelos menos a partir de começos do Século XVIII:
"João Dias da Silva, foi nobre cidadão de São Paulo, em cuja república teve grande parte e voto respeitoso nas matérias do governo civil ou do real serviço, tratando-se por assembléia. Foi juiz de órfãos por provisão de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, pela qual tomou posse em 16 de julho de 1711, e estando servindo teve provisão régia para servir até haver proprietário, e nela se faz menção de ser o dito João Dias o que mandou fazer cofre de três chaves para segurança dos órfãos."
Ora, sucede que, em grande parte do Brasil daqueles tempos, havia um problema crônico de falta de dinheiro amoedado, que obrigava a população a viver fazendo trocas diretas de mercadorias. Um grave inconveniente é claro, que tornava o acesso ao Cofre dos Órfãos, onde havia "dinheiro de verdade", um privilégio muito disputado. É o que conta Affonso de E. Taunay:
"O pouco dinheiro amoedado se concentrava nas mãos de alguns argentários e no cofre de órfãos, cujo papel na vida econômica do burgo pode ser comparado servatis servandis ao dos estabelecimentos bancários hodiernos.
Quase sempre os bens dos herdeiros menores são vendidos em praça, a fim de se evitarem "descaminhos e defraudos", e o produto aplicado em empréstimos vencendo juros de 8% ao ano. Obrigava o prestamista sua pessoa e bens móveis e de raiz havidos e por haver, comprometendo-se a pagar a dívida ao pé do juízo, no cabo e fim de um ano, sem contradição alguma e sem a isto pôr dúvida nem embargo algum. Os empréstimos exigiam ainda a garantia pessoal de um fiador e principal pagador. “Tão disputado o numerário que nunca permanecia no cofre do juízo, aparecendo logo quem o pretendesse.” (****)
Vê-se, pois, que do dinheiro dos órfãos era feito um grande negócio, principalmente em São Paulo, na qual a morte de homens com filhos menores não era nada incomum. Metiam-se os pais interiores adentro para apresamento de índios ou procura de ouro, e muitas vezes tudo o que voltava eram os ossos em um saco de couro, para sepultamento em alguma igreja; a morte de mulheres no parto era coisa corriqueira, de modo que, ao longo da vida, não raro um homem casava-se várias vezes, e seguia tendo filhos enquanto conseguia o que resultava, eventualmente, em homens bastante velhos com filhos muito pequenos e, daí, uma orfandade precoce; as doenças, na época, levavam muita gente à morte por absoluta falta de tratamento. Disso se conclui que o número de órfãos não era assim tão exíguo. Por outro lado, como deveria ser pobre a povoação em que uma parte substancial do dinheiro amoedado disponível provinha, muitas vezes, do Cofre do Juizado de Órfãos!
(*) Ordenações do Reino
De acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(**) Concelho (sim, com "c"), nome dado à divisão municipal portuguesa.
(***) De acordo com a Nobiliarchia Paulistana.
(****) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo
Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 115









ALGUNS BAÚS E COFRES SEMELHANTES EM MUSEUS









DECIS – Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Jurídicas
PGHIS – Programa de Pós-Graduação em História

AS TRÊS CHAVES DO JUÍZO: O COFRE DOS ÓRFÃOS E O CRÉDITO NOS TEMPOS DO DECLÍNIO DO OURO – VILA DE SÃO JOÃO DEL-REI (1774-1806)

Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de São João del-Rei, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. Afonso de Alencastro Graça Filho

RAPHAEL CHAVES FERREIRA

São João del-Rei  
 2015


Resumo
Este trabalho se dedica à análise do papel financeiro do cofre do juízo dos órfãos da vila de São João del-Rei em meio a um contexto econômico marcado pelo esgotamento das jazidas auríferas, que leva a um processo de acomodação evolutiva, no qual os fatores de produção seriam direcionados para a produção de gêneros voltados ao mercado de abastecimento. O cofre dos órfãos, instituição que data do reinado de D. João III, funcionava como uma espécie de reserva de liquidez em meio a uma formação social e econômica caracterizada por uma crônica escassez de numerário e por um endividamento estrutural. Por esta razão, o controle dos cargos ligados a essa magistratura conferiam a seus dignitários um importante capital social.

Introdução

Vila de São José do Rio das Mortes, o ano era 1793. Manoel Gonçalves da Costa se apresentava diante do juiz de órfãos daquela vila, e declarava que, como tutor do menor Antônio, filho de Manoel da Costa Afonso e seu irmão, haviam feito arrematar em praça pública os bens de sua legítima pela quantia de 286$127, passando escritura de dinheiro a juros ao mesmo comprador, o Alferes Manoel Mendes dos Santos. O tutor pedia ao juiz que os juros dessa dívida fossem consignados à alimentação e criação do órfão.
Quatro anos depois, em junho de 1797, era intimado pelo Sargento-Mor Antônio da Fonseca Pestana de Gouveia, que então atuava como ministro daquele juízo, a prestar contas. O tutor, representado por seu procurador, mandava dizer que a órfã Joaquina, sua irmã, já se encontrava casada há mais de cinco anos e entregue dos bens que lhe foram adjudicados da partilha. Dizia mais que o menor Antônio, então com 18 anos, vivia em boa educação em companhia da inventariante, sua mãe, e que já havia cobrado os juros vencidos ao Alferes Manoel Mendes dos Santos, mas que não os havia destinado ao cofre dos órfãos por terem sido empregues na alimentação do seu tutelado.
Três anos depois se fazia juntada ao documento, na qual se dizia que o órfão Antônio da Costa se casara com Maria José da Visitação e pedia que lhe fosse entregue a sua herança. O Capitão José dos Santos, juiz de órfãos daquela vila, deu sua licença, declarando Antônio emancipado e ordenando que se lhe entregasse aqueles 286$127 que lhe tocavam por sua herança, o que foi feito no dia 21 de junho de 1800.1

1 IPHAN-SJDR, Caixa destinada às Contas de Tutela, nº 02;

O que tem a nos dizer a experiência do órfão Antônio da Costa, do seu irmão e tutor, Manoel Gonçalves da Costa, do Alferes Manoel Mendes, devedor ao cofre do juízo dos órfãos daquela vila, sobre o Império Português? Muito, na medida em que depõe sobre a normatização do problema da herança, sobre o amparo à orfandade e sobre a construção de mecanismos de crédito institucionais  fundamentais em meio às diversas formações sociais e econômicas sob a autoridade da Coroa portuguesa.
As Ordenações Filipinas estabeleciam que, com a morte do pai, ficava o juiz de órfãos responsável por dar tutores aos menores, que zelassem por seus bens e cuidassem para que fossem criados e educados conforme a sua condição. Os tutores também deveriam pôr em pregão os bens adjudicados à herança dos menores, vertendo-os em numerário. Esse dinheiro era então depositado no cofre dos órfãos, sendo correntemente capitalizado em empréstimos a juro. Sendo a carência de liquidez uma característica intrínseca às economias pré-capitalistas, o controle do cofre era estratégico para os grupos sociais dominantes, funcionando como um bolsão capaz de reter uma parcela da acumulação gerada no espaço econômico imediato. O dinheiro era, pois, reinserido no mercado e na produção, alimentando a reprodução das formas sociais e econômicas vigentes. Paralelamente, os juros e os rendimentos dessas dívidas eram direcionados para a criação dos órfãos e, de modo mais amplo, para a manutenção dos interesses da unidade familiar, como depõe o caso de nosso Antônio da Costa. Tal era a premência do juízo de órfãos no provimento de liquidez à economia colonial que Affonso de Taunay, em sua História da Cidade de São Paulo, chegou a compará-lo com o dos estabelecimentos bancários hodiernos.2 Mais recentemente, João Fragoso, admitido um certo anacronismo, comparou a instituição a uma espécie de poupança social, situando-a em meio ao conjunto de bens e serviços identificados à República que corporificavam uma economia do bem comum, na qual a posse desses cargos propiciava uma espécie particular de apropriação do excedente social.

2 TAUNAY, A. de. História da Cidade de São Paulo. Edições do Senado Federal, Brasília: 2004, p. 116;
3 FRAGOSO, J. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)”. In: FRAGOSO, J; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 2010;

Assim, em nosso primeiro capítulo, intitulado História custodial e orfandade: o direito e a questão da tutela no Império Português – Vila de São João del-Rei, século XVIII, remontamos aos séculos XIII e XIV, buscando situar historicamente o problema da criança desamparada no mundo ibérico, tendo por pano de fundo a formação dos primeiros Estados Nacionais e os desafios colocados com o renascimento urbano e o despontar da burguesia mercantil, buscando apreender fundamentos do repertório de representações simbólicas que conferiam sentido e orientação às práticas jurídicas relativas à orfandade e ao problema da herança. Assim, debruçamo-nos sobre alguns dos principais códigos de leis surgidos na Península entre o baixo medievo e os primeiros séculos da era moderna, iniciando pelas Siete Partidas de Afonso X de Leão e Castella, que basicamente retomavam as disposições do Corpo Iuris Civilis aliadas ao direito canônico e que tiveram importante repercussão em Portugal ao longo do século XIV, passando pelos ordenamentos subsequentes: afonsino, manuelino e filipino.
Até as Ordenações Afonsinas, as atribuições relativas à gestão da pessoa e dos bens dos órfãos cabiam aos juízes ordinários – e, apenas em caráter especial, aos juízes de órfãos. Ou seja, apenas algumas vilas e cidades possuíam tal magistratura em regime de privilégio. Sendo a aristocracia portuguesa cooptada por meio da burocracia, não é de se estranhar que o cargo tenha se tornado uma importante moeda de troca na economia de mercês. Seu número cresceu de tal maneira ao longo do século XV que o texto manuelino formalizaria o julgado dos órfãos logo ao início do quinhentos.
A gestão dos bens dos órfãos, no entanto, foi constante matéria de disputas. As Ordenações Afonsinas, por exemplo, compilavam uma lei datada dos tempos do reinado de D. Duarte que buscava coibir a destinação usurária do dinheiro dos menores, ordenando aos tutores, no zelo pelas almas de seus súditos, que agissem no interesse dos menores sem ofensa às leis de Deus. As Ordenações Manuelinas, por sua vez, mantiveram a condenação à usura, mas abriam brecha para que o dinheiro dos menores fosse dado a ganho a mercadores abonados e oficiais mecânicos, desde que se oferecesse hipotecas e fiadores que viessem salvaguardar o interesse dos menores – podendo mesmo lançar em pregão o dinheiro dos órfãos para que os interessados se manifestassem. Essa política levou a tamanhos descaminhos e prejuízos para os menores que, sob o reinado de D. João III, na década de 1530, seria regulamentada a arrecadação do dinheiro dos órfãos em cofre específico. 19 O trabalho do historiador João Fragoso indicou como, na ausência de mecanismos creditícios consolidados, o cofre dos órfãos foi uma fonte de liquidez fundamental para a própria sedimentação da ordem colonial no Rio de Janeiro seiscentista.4 Entendemos que tal experiência é passível de alguma generalização, na medida em que, sobretudo a partir do início do século XVII, a Coroa dirige constantes apelos às autoridades coloniais para que se procedesse à arrecadação das fazendas dos órfãos em cofres específicos, instando para que esse dinheiro fosse dado a juro no interesse dos menores e do bem comum. Entendemos, pois, que a instituição e as disposições jurídicas que a enredavam se tornam peça chave para a subsistência da empresa colonial. Partindo dessa chave de análise, transpusemos o problema da interiorização da metrópole para a capitania mineira, tendo por recorte espacial a vila de São João del-Rei, sede da comarca do Rio das Mortes desde 1713, onde a gestão das pessoas e dos bens dos órfãos coubera aos juízes ordinários até 1731, quando um alvará régio mandou ao ouvidor que fizesse eleger juiz e escrivão de órfãos, em razão da inexperiência daqueles em matérias de direito e de apropriações indébitas dos fundos dos órfãos. Além disso, temos indícios de que já em 1727 o dinheiro era dado a juro, como depõe uma carta de D. João V, na qual este ordena que, no interesse dos órfãos, os empréstimos fossem condicionados a penhores em ouro e prata. Valemo-nos desse expediente para discorrer sobre a lógica do funcionamento da instituição, baseando a análise fundamentalmente nas escrituras notariais e no único livro de registros do cofre dos órfãos de que dispomos para o período proposto, com termo de abertura em 1802, além da contabilidade do inventário post mortem do Capitão João Soares de Bulhões, cujo detalhamento nos possibilita compreender aspectos práticos das relações de tutela. 4 FRAGOSO, J. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro...”, op. cit.;
Em nosso segundo capítulo, intitulado Das Minas Gerais setecentistas – Bases da materialidade: a Comarca do Rio das Mortes, dedicamo-nos, a partir de um breve balanço historiográfico, a resgatar os fundamentos das relações de produção que organizavam a lógica do capital mercantil e do crédito na capitania mineira no intercurso com outras praças da colônia, sobretudo Rio de Janeiro e Salvador, uma vez que, na hierarquização dos circuitos mercantis, São João del-Rei se inseria de maneira subordinada ao capital dos negociantes grossistas 20 estabelecidos nessas praças. Encarecendo o contexto econômico diferenciado da comarca em relação às demais regiões da capitania, devido ao maior equilíbrio que ali se verificava na distribuição entre as atividades mineradoras, agropecuaristas e mercantis, situamos o processo de acomodação evolutiva que decorre do esgotamento das jazidas auríferas em termos de um deslocamento do eixo econômico da capitania, que passava de Vila Rica a Rio das Mortes.

5  Ver ALMEIDA, C. M. C. de. Ricos e Pobres em Minas Gerais Colonial. Belo Horizonte: Argumentum, 2010. Ver também GRAÇA FILHO, A. de A. Negócios negreiros na antiga comarca do Rio das Mortes: Minas Gerais, c.1750-c.1850. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado/CNPq. São João Del Rei, fevereiro de 2010;
6 Ver GRAÇA FILHO, A. de A. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Anablume, 2002;

Entendemos, contudo, que, embora Rio das Mortes tivesse um maior grau de mercantilização do excedente agrícola relativamente à Vila Rica, a praça comercial de São João del-Rei na segunda metade do século XVIII estava longe da pujança que adquiriria a partir da primeira metade do século XIX.6 No setecentos, sequer é possível delimitar com clareza uma esfera mercantil descolada do setor agrário, considerando que as grandes fortunas sãojoanenses se caracterizavam justamente pela diversificação de atividades econômicas, compondo uma elite pluriocupacional.7 Diante da relativa fragilidade do setor mercantil na sede da comarca do Rio das Mortes, torna-se compreensível o papel proeminente do cofre dos órfãos no mercado creditício local – cujos movimentos e flutuações são matéria de nosso terceiro capítulo: Instituições Coloniais e Crédito: do papel creditício do Juízo de Órfãos na vila de São João del-Rei (1774-1806).
Nesse capítulo também buscamos identificar o perfil dos homens e mulheres que tomaram empréstimos do cofre de órfãos, ao longo do período proposto, cruzando as escrituras públicas com os inventários post mortem sob a guarda do arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em São João del-Rei.
Em nosso quarto e último capítulo, intitulado Dos agentes do Juízo: um exercício de microanálise e prosopografia – São João del-Rei (1770-1809), 21 municiamos aportes da microanálise, mudando a escala de observação e procurando ver mais de perto a trama dos agentes que orbitaram em torno do juízo dos órfãos da vila, iniciando por um estudo prosopográfico com o objetivo de situar cada um dos onze homens que ocuparam o cargo de juiz de órfãos ao longo do período proposta em sua teia relacional. E, por fim, encerramos com um estudo de caso sobre a gestão dos bens e pessoas dos órfãos do Capitão João Soares de Bulhões, principal fortuna mobilizada pelos empréstimos da instituição em nossa amostra, no intuito de deslindar a dinâmica da instituição, buscando fugir às armadilhas funcionalistas mediante a reconstrução narrativa da agência dos sujeitos que orbitavam em torno da esfera de influência daquela magistratura.
Por fim, julgamos necessárias algumas considerações sobre a documentação sobre a qual nos apoiamos. A maioria de nossas fontes é de natureza cartorial, sendo que as escrituras notariais constituem a base de nossa pesquisa. Conforme referimos, o primeiro livro do cofre dos órfãos que chegou até nós têm o seu termo de abertura em 1802. Assim, como era costumeiro que os empréstimos fornecidos pela referida instituição fossem formalizados em notas públicas para maior segurança dos menores, é fundamentalmente essa fonte que nos serve de base para mensurar a sua atividade creditícia. E aqui surge o primeiro problema: a documentação é lacunar. A série é descontínua entre abril de 1782 e abril de 1786; março de 1787 e janeiro de 1789; e entre setembro de 1794 e novembro de 1796 – ou seja, sobretudo a década de 1780 restou prejudicada. Procedemos, pois, ao levantamento de todas as escrituras públicas de dívidas registradas no período, fossem elas procedidas de instituições coloniais – como o cofre dos órfãos – ou de credores privados, cientes de que boa parte das transações creditícias neste mercado, marcado pela informalidade e pela pessoalidade, davam-se à revelia dessas formas de registro. Todavia, embora as escrituras notariais dêem conta de apenas uma parcela das transações realizadas no âmbito desse espaço econômico, servem-nos como índices – isto é, como termômetros para mensurar os movimentos conjunturais desse mercado.
As escrituras notariais também foram a base a partir da qual selecionamos os inventários post mortem e testamentos representativos, que nos permitissem reconstruir os espaços de ação da instituição atentos à dialética entre as disposições 22 normativas do direito – forma por excelência da violência simbólica8 e engrenagem fundamental no processo que preside à construção e constante reiteração da soberania lusitana – e os espaços de autonomia dos sujeitos, isto é, a maneira como se dá a apropriação desses espaços, os modos de fazer, configuradores daquilo que De Certeau chamou de rede de antidisciplina, que nada mais são que as maneiras de fazer, “as formas subreptícias assumidas pela criatividade dispersa, tática e bricoladora”, as astúcias dos consumidores da ordem que, microbianamente, alteram o funcionamento das instituições e dos vetores disciplinares.

8 BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil: 1989, p. 211;
9 CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Editora Vozes: 1998, pp. 38-41; 23

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